Encontro com o eu criança

Em uma tarde de dezembro de 2024, Raimunda se encontrava no sertão do Ceará, na localidade onde nasceu. Ela viajou horas de avião para passar o natal e as férias em família. Naquela época do ano, as casas de seus familiares ficavam agradáveis e ao mesmo tempo sufocantemente cheia. Raimunda gostava de psicoativos para relaxar as vezes, e naquele dia a casa que ficava ao fundo da residência de sua avó estava vazia, uma casa sem móveis e apenas uma rede. Ela aproveitou aquele momento para fumar uma erva. Deitou na rede o pegou a ceda e a piteira, dichavou o prensado, colocou na ceda e bolou tranquilamente. Olhou no relógio, eram 16h20. Acendeu o baseado com seu isqueiro rosa. A lombra bateu na hora, o vento seco do sertão batendo de leve em seu rosto e ele grunhia feito um gigante soprando. O ferro que segurava a rede reclamava do balanço por falta de óleo. Fechou os olhos e apreciou aquele momento raro.

Raimunda não sabe quantas horas ficou se balançando antes do diálogo com a sua Erê de 8 anos começar. Ela se sentou do lado de seu eu de 27 anos, curiosa para saber o que aconteceu com seu eu do futuro. A primeira coisa que quis saber foi com quantos anos conseguiu realizar o sonho de alisar o cabelo. Raimunda olhou-a fraternalmente e respondeu que elas nunca alisaram o cabelo. Com 14 anos aprendemos a amar nossos cachinhos, e, quando entramos para a faculdade, entendemos que essa vontade de alisar o cabelo era fruto de racismo, e encontramos pessoas parecidas com nós, que empoderaram nossos crespos. A Erê de 8 anos não entendia bem aquelas palavras, mas gostou da imagem que viu; amou aquele volume dos cachos e aquele ruivo tangerina. Ela ficou decepcionada pelo fato de nunca conseguir alisar o cabelo, pois era um desejo quase sufocante, mas a confiança que sentia na sua eu do futuro era consolável. Então entramos para uma faculdade? Perguntou empolgada. Sim, somos professora de português. Eu sei, parece desesperador, e realmente é. Foi o que conseguimos cursar, mas agora estou no mestrado e pretendo fazer um doutorado para ser professora universitária. Você será uma aluna cruel no ensino médio, e pagará por tudo voltando para a sala de aula, mas agora como professora. Mas, se te consola, a faculdade será os cinco melhores anos da sua vida. As duas estavam deitadas lado a lado naquela rede com as cabeças para o lado oposto uma da outra. A Erê olhou-a rindo com certo deboche e ao mesmo tempo admiração, e perguntou se elas tinham casado e tido filhos. Raimunda respondeu que não, mas ela ainda pretendia ter filhos quando completasse 30 anos; disse que não era casada, mas morava junto com um cara e estava confusa se era uma relação boa o ruim. Na verdade, no início foi muito ruim. A relação começou durante uma quarentena de dois anos, por causa de um vírus que matou muita gente; teve um aborto com dois meses de relação; adquiriu problemas alimentares por causa disso, emagrecendo muito, e teve muitos excessos com álcool. Meses depois ela descobriu traições por parte de seu namorado, o perdoou, mas por descobrir as traições quando já estavam morando em outro estado, logo que se mudaram. Fiquei com vergonha de voltar para trás, e havia dependência emocional por nossa parte. Estávamos juntos a dois anos. Depois disso, não descobri mais traições por parte dele, mas não tivemos paz por pelo menos um ano seguinte, por causa de mágoas decorrente desse processo. Hoje, já não existe tanta mágoa, mas gasto muita energia para conseguir confiar nele em certas situações. Não sei se isso vale a pena, porque eu e ele passamos boa parte da nossa relação brigando. Nem tudo é flores, mas se te consola, sou mais feliz do que você. A Erê de 8 anos olhou seu eu de 27 anos com uma mistura de desamparo e revolta. As lágrimas desceram em sua face infantil. Como você pode ser como a tia Maria? Aceitando ser traída e humilhada por um homem? Você é apenas uma criança, Raimunda. E quando crescemos, vamos desaprendendo a vida e sabendo menos ainda, viramos mais criança, duvidamos de tudo, tememos tudo, passamos a ver o quanto a vida é cruel. Quanto mais amadurecemos, mais sozinhas ficamos, mais carentes, mais moles. Dizem que depois dos 40 anos isso melhora um pouco, mas por enquanto ainda tenho 27. E só pretendo ir me visitar novamente quando eu completar os 40 anos. E você ainda fala que é mais feliz? Nós não tínhamos medo de nada com 8 anos de idade. Sua mãe sempre falava para a Erê de 8 anos que ela era uma criança destemida, como podia agora ser uma covarde medrosa? Raimunda costumava olhar para o céu e se perguntar como alguém poderia duvidar da existência de Deus, e agora ela cresceu e duvida de tudo, pois conheceu a ciência.

As crianças lidam com o medo de forma diferente, Êre.

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