Vida passada

Naquela noite eu estava deitada, descendo e descendo reels no Instagram, com o tédio no corpo e a culpa gritando na mente por causa da procrastinação. Na lateral de cima, no lado esquerdo do celular, desceu na barra de notificação uma imagem enviada por um velho amigo na qual, atualmente, nossa única forma de comunicação é trocar reels. Já fazem anos que só nos comunicamos assim, mas naquele dia ele estava completando ano e o parabenizei, ele completava 40+. Talvez essa tenha sido a primeira vez em mais de um ano que digitei de fato palavras e direcionei àquele amigo. Me respondeu seco “obrigada, desejo o mesmo pra você”. Duas horas depois me enviou uma foto. Deixe-me descrever a foto: éramos 8 amigos, eu uma amiga e mais 6 amigos, 7 em pé um do lado do outro e 1 acócoras na frente. Estávamos todos a vontade e descontraídos, sorrindo e felizes. Quase todos com idade entre 20 e 25 anos. A data era 30 de maio de 2019, a exatamente 6 anos atrás. Meu cabelo estava curto e eu estava destemida de cabeça levantada e sorriso despreocupado. Mas o que mais me chamou atenção naquela foto não era quem estava na foto e sim quem estava por trás dela. Vendo a foto eu lembrei da sensação que eu sentia naquele dia. Tínhamos sido convidados pro aniversário do meu velho amigo, mas a mãe dele não sabia que ele fumava um, então, nós, maconheiros, inventamos um rolê como desculpa pra fumar. Escolhemos uma terreno amplo cheio de grama onde dava pra ver a despedida do sol, mesmo rodeado de montanhas, paisagem da foto. Mas quem havia tirado aquela foto? Lembro que eu e a Amanda estávamos mais próximas que nunca, depois de superar a paixão pelo mesmo boy. Isso aconteceu depois de uma conversa sincera sobre trasarmos com o Stênio a meses, frequentarmos o mesmo ciclo de amizades e nunca termos conversado sobre isso. Na verdade, confesso que no início eu não fazia a menor ideia de que eles já ficavam antes de mim. Eu me toquei disso um dia quando, depois de uma deliciosa noite de amor com o boy, acordo recepcionada com um pedaço enorme de bolo feito com manteiga de cannabys, conhecido também como bolo mágico, no café da manhã, e, advinha?!, feito pela Amanda. Ela fez o bolo e mandou um pedaço pra ele. Eu fiquei tão grata a ela por isso. Comecei o dia chapada e ainda comendo bem. Só lembro de não estranhar essa atitude nem relacionar com romance nem nada. Quer dizer, o fato dela mandar bolo mágico naquela hora era tão bom, mas não estranhei essa generosidade. E também a gente não namorava, então eu não tinha nada haver com isso. Eu fiquei tão grata que de tardezinha estávamos na mesma roda de amigo e falei exatamente assim kkk, sem maldade nenhuma, "Nossa, Amanda, aquele bolo de maconha que vc fez tava uma delícia, sério. Muito bom mesmo". E foi aí que me toquei, quase no mesmo segundo que falei. Tenho certeza que ela se tocou naquele momento também. Ficou um climão, mas ela só agradeceu falando alguma coisa e eu disfarcei falando alguma outra coisa. Quando conversamos sobre ele, agente já não estava mais ficando. Observe, eu e ele passamos 9 meses ficando e quando descobri que eles ficavam, estávamos com uns 3 meses ficando. Nunca namoramos, nem eles. E apesar de que eu estava apaixonada, não ligava muito pro fato deles ficarem também, e não era uma coisa que afetava minha relação com ela ou com ele. Sinto falta de quem eu era naquela vida.

Lembro-me da conversa profunda com o Whallyson e o Léo sobre a sexualidade gay. Do meu velho amigo colocando colírio e pedindo pra gente colocar, pra não dar pala para a mãe dele. Lembro até a implicação elegante da bixa Marciel comigo e do rolo que rolava entre a Amanda e o Musta na época. Deixe-me falar um pouco sobre minha relação com Marciel. A gente só éramos amigos por fazer parte do mesmo ciclo de amizades. Naquela época, até o início da pandemia, criaríamos uma rotina diária de se encontrar todos os dias na Casa da Flores e para rachar uma balinha de café para não dormir de cara. Mas na real, viramos amigos próximos mesmo na pandemia. Foi um momento difícil pra todo mundo e agente se ajudava como podia. Passamos uns meses em isolamento juntos, pois ele ficou sem botijão de gás e ia almoçar diariamente lá em casa. Me ajudou muito a não ficar louca em isolamento e eu o ajudei. Mas também foi essa bixa branca que me incentivou a cheirar bright a primeira vez.

Mas quem havia registrado aquele clique? Com certeza era maconheira e fazia parte daquela turma de amigos. Por que ela não saiu na foto? Era menos querida? Era nova na turma? Mesmo se fosse uma pessoa tímida, tenho certeza que a gente ia convencê-la a aparecer. Talvez ela tenha aparecido em outra foto. Resolvi perguntar ao meu velho amigo. Vai que ele lembre. Foi a segunda vez que me referi com palavra ao meu velho amigo depois de anos. Perguntei e respondeu que não sabe. Quase esqueci do Diego. Diego é uma artista maravilhoso, pintor de quadros dedicados aos orixás. Naquela época ele ainda fumava uma carteira de hollywood por dia e era sedentário. Quando estava sem dinheiro, ele juntava as bitucas jogadas em seu quintal e fazia cigarros improvisados. Confesso que já fumei cigarro improvisado com ele. Estávamos em um rolê caseiro e acabou o cigarro. Lá se foi a bixa juntar as bitucas pra fazer cigarros insalubres. Pois num é que salvou o rolê. Todas secas por uma fumaça depois de umas latas de Kaiser de 1,50R$ e dezenas de bolotadas na minha baldada de 5 litros. Hoje ele faz academia e parou de fumar cigarro, apesar de que duvido que ele tenha tomado parado de fumar maconha. Como é lindo ver que o tempo cura as pessoas, mesmo depois de termos passado por uma pandemia de COVID 19. Pelo menos essa é a desculpa que uso para justificar o porque minha vida piorou em comparação com o antes e o depois. Vendo essa foto, eu sei e sinto no corpo o quanto eu era feliz, e eu sabia disso. Eu transpirava contentamento. Viveria tudo na mesma intensidade. Hoje a vida me afastou de todos esses amigos. Só troco contato com o Léo, que atualmente é meu melhor amigo, mesmo morando em Estados diferentes, conversando algumas vezes ao ano, se encontrando uma vez ao ano sempre que possível e ele sendo a favor dos agronegócios. Conheci o Léo em um rolê aleatório. Ele sempre aparecia nos roles mais variados e aleatórios possíveis. Não nos tornamos amigos de cara. Nos dávamos muito bem, mas nunca deixei de reparar que quando ele bebia incorporava uma realidade nitidamente fantasiosa, isso me passava uma impressão de que ele era forçado. Até que descobrimos que éramos vizinhos e maconheiros de rotina, que fumávamos todo dia e em horários rotineiros, como antes de almoço, depois do almoço, antes da janta, antes da aula, que era depois da janta, e depois da aula e um antes de dormir. Um dia eu estava chegando em casa e nos esbarramos no caminho, o Léo botou o dele, fizemos um rango, conversamos horrores e rimos pra caralho. Foi aí que comecei a ver um outro lado dele. Seu lado sensível e inseguro. Tínhamos uma origem muito parecida. Vínhamos do sertão do Ceará para estudar em uma Universidade Federal, isso mudou nossas vidas, pois expandiu nossa mente perceber que existia muito mais além do que a miséria que era estampada nas nossas comunidades de origem, decorrente da colonização que roubou os conhecimentos e saberes passados de geração e geração, tomou como deles, mataram os anciãos e os que tinham o dom da palavra, causando um verdadeiro genocídio dos nossos ancestrais, fazendo esquecer quem somos, de onde viemos, e com isso criaram nossa dependência da margem do estado, que chegava até nós de forma arcaica e lenta. Um dia o Léo me convidou pra visitar o seu sertão, em Canidé. Eu fui, conheci a leonina mãe dele e seu pai, típico bruto do sertão, e pai de uma gay. Daí já da pra sentir o peso que o Léo carregava, tanto o pai quanto a mãe eram homofóbicos, não por ideologia nem nada disso, mas por questões estruturais e culturais mesmo. A cultura da violência normalizada, consequência da falta do conhecimento ancestral. Homens gays no sertão do Ceará geralmente são animalizados, sexualizados e tomado como o palhaço da turma, mas sempre alvo de chacotas e alvo de homofobia por homens héteros que já comeram a gay escondido ou só esperavam uma oportunidade. Quando vi sua realidade, me identifiquei com sua origem e o aceitei nu, o acolhi e me senti acolhida. Desde de então nossa amizade só se fortaleceu, até hoje.

O Wallyson era meu melhor amigo na época, hoje ele é professor e militante comunitário. Eu era apaixonada por ele de uma forma não romântica, na amizade mesmo, a ponto de sentir ciúmes e competir com outras amizades, sem externalizar, claro. Vivemos literalmente um romance de amizade. Comecei a sentir essas coisas por ele um dia, logo quando comecei a fumar maconha e ele também, ou seja, iniciamos coincidentemente essa experiência juntos. Geralmente, estávamos só nós dois na Casa das Flores, uma república de melhores amigos - eu iria ser integrante de lá alguns meses depois - comprávamos douradinha, uma cachaça local, limões e maconha. fazíamos caipirinha, bebíamos 3 doses puras antes de começar a beber as caipirinhas e fumar o primeiro beck. Colocávamos jogos de luzes coloridos da shopee e sentávamos na varanda com a JBL tocando Johnny Hooker, Liniker, Jade Baraldo, entre outras divas. No primeiro dia, nos emocionamos ao assistir juntos o clipe “flutua”, de Johnny Hooker e Liniker, em que um gay é espancado na rua e a música fala sobre o amor gay. O Wallyson estava se descobrindo sexualmente e era uma fase difícil pra ele. Em outros dias , fazíamos o mesmo ritual e conversávamos sobre nossos traumas e abusos vividos na infância e na vida. Acho q foi em um desses nossos momentos que cabei descobrindo que aquele desconforto perto do meu padrasto era na verdade fruto dos abusos que sofri dele durante minha pré adolescência. Comecei a lembrar que eu tinha pavor de trocar de roupa sabendo que ele estava em casa. Trauma das vezes em que eu me trocava e sentia alguém espiando pelas brechas da porta. Quando eu ia olhar, ele estava no corredor perto da porta consertando alguma coisa. Eu pensava, deve ser loucura da minha cabeça, meu pai nunca me sexualizaria. Quando me dei conta de que aquilo era abuso sexual, eu já tinha 20 anos e morava fora havia 2 anos e já estava na faculdade. Mas naqueles encontros, eu ainda não me dava conta dos abusos, eu era uma excessão em meio à vários traumatizados da Federal. Quando enxerguei meu traumas, isso explicou muitos de meus comportamentos. Enfim.

  Não vejo o Wallyson desde antes da pandemia. Eu o amo até hoje. Mesmo que não conversemos mais. A Amanda engravidou, quem diria, e sumiu do mapa. Marciel encontrei ele depois da pandemia, no início do ano de 2024. Conversamos e implicamos um com o outro, bebemos, comemos e fumamos maconha. Aquele dia foi incrível, estávamos nós e uma outra amiga, a Dani. Ela não aparece na foto. Depois desse dia nunca mais nos falamos, mas amo-os para sempre. E o meu velho amigo. O nome dele é Laudenir, ele é geminiano e é aquela pessoa que contagia o ambiente com seu carisma, mas por dentro parece quebrado pros mais sensíveis. Sabe um erê? Vejo ele assim. Ele me despertava empatia e humanidade. Por isso faço questão de trocar reels todos os dias com ele. Me dá uma sensação de que ainda temos algum laço afetivo. No outro dia, me manda mensagem Laudenir afirmando “era a Dani kkk”. Rimos juntos. Pelo menos, eu ri. Como esqueci dela. Mas como ela não saiu na foto? Laudenir me envia outra foto. Dessa vez lá estava a Dani, na ponta da mesa com outros colegas que eu não lembrava que estavam lá. Ela estava meio abatida, com o sorriso levemente forçado. Talvez ela não estivesse bem ou não se sentisse a vontade no ambiente. Ela era meio bruxa. Hoje ela é CLT é vive uma vida mais padronizada. Ele também me enviou uma outra foto de nós dois. Na foto, eu estou agarrando ele pela cabeça e colocando no meu ombro como se ele fosse uma criança fofa e bochechuda, enquanto sorrio pra cima de olhos fechados e Laudenir agarrado na minha cintura. Acho que a Dani não saiu na foto porque ela era recente no grupo e talvez ela não se sentisse ainda tão a vontade quanto ela passaria a sentir depois daquele dia. Não lembro-me bem, mas acho que ela pediu pra tirar a foto. Isso é apenas uma suposição, pois não me recordo bem. Do resto, são minha lembranças de uma vida passada emaranhada em um clique transpirando cheiros, risos, auto-estima, toques, marola e muito amor.

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