mãos vermelhas

Meus ancestrais acreditavam que trabalhar desde cedo ajudava a se tornar um adulto trabalhador
Mas eu nunca tinha sabido antes o que era na prática
Quando pude saber, todos os meus amigos, primos e irmãos estavam felizes
Era nossa chance de ganhar dinheiro pra comprar pirulito e bombom
Era uma plantação de pimenta enorme e recente
Diz que aceitavam criança, mas pagavam menos
Eram 50 centavos cada balde de manteiga chei de pimenta
Todos estavam dedicados ao novo trabalho
Adultos, velhos e crianças
A primeira e última vez que fui
Fui feliz porque ia ganhar dinheiro
Fui com minha irmã mais velha e a mãe
Parecia simples
Era só catar as pimentas e colocar no balde
Eu queria ser a mais rápida
Então fui catando tudo que era pimenta
O balde já tava pela metade quando minha irmã falou que as que eu tinha catado eram verdes e os homens brigavam
Fiquei desesperada
Esperei ficar longe do olhar de todos e joguei as pimentas no canto
Minha irmã me ajudou
Falei pra mãe e ela disse pra eu parar de trabalhar e esperar ela até o horário de ir pra casa
No final da tarde fomos pra casa caminhando pelos colonos, onde morávamos
Todos estavam exaustos e finalmente podíamos descansar 
Até que chegou a hora de dormir
Mas a noite chegou
E como em chamas minhas mãos começaram a queimar de dor 
Minha irmã, sempre mais forte, me alertou que eram as pimentas
E com as mãos vermelhas, falou que colocar no balde com água aliviava
Era um balde de manteiga também
Naquele dia não dormi
Ninguém dormiu
Nem os vizinhos
Percebi pelas luzes dos telhados dos barracos de taipo
E pelos gemidos durante a noite
Até quem usava luva sentia dor
Minha mãe disse que o remédio era dormir
Mas nem dormi nem deixei ela dormir com o choro nos seus ouvidos
Percebi que ela também sentia dor, mas ela era forte e adulta, tinha que demonstrar firmeza
Tava sofrendo mais por mim do que com a dor
Até hoje não sei por que ela me deixou trabalhar
Acho que era a esperança deu me tornar uma adulta trabalhadeira 
Ou pelas as dificuldades mesmo
Fiquei com minhas mãos ardendo e nem ganhei os cinquenta centavos
Meu primo ganhou 1,50
Ele não reclamou de não ter dormido
No outro dia as mães conversavam no terreiro sobre as noites em claro
E meus amigos comiam pirulito e bombom da budega
Minha irmã dividiu os dela comigo
E até continuou trabalhando
Menos eu
E mesmo assim eu sofri com a dor dos outros
Os mãos vermelhas.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Você

Não é pessoal

Terceira margem do riso