Carta para Carolina: bulimia da fome
Carta para Carolina: bulimia da fome
Carolina, primeiramente, gostaria de falar que emocionei-me
ao ler “Quarto de despejo” e ontem li o conto “Favela” que me fez ver as
mulheres da minha vida em você. Atualmente estou lendo “Diária de Bitita” e
agradeço por compartilhar sua escrevivência e proporcionar fortalecimentos à
outras mulheres pretas e faveladas com inspirações. Partilho com você minha
escrevivência inspirada em sua poesia. Essa história aconteceu três décadas
depois de sua morte, num período em que o Brasil foi governado por alguém que
já passou fome.
Carolina, diz que a história de bulimia que se encontra aqui
é um pouco diferente das bulimias que se encontram nas gerações de emissoras de
TVs. Mas a televisão talvez tenha sido a principal causa deste causo, não sei.
Depois tudo só desandou, conforme a dita realidade econômica de anarquistas das
favelas do sertão do Ceará. O nome dela era Cafusa, como várias outras Cafusas
existentes naquela época. De cabelo ruim, olhos grandes e bucho quebrado. Mas
haviam os que elogiavam: "rai ficá bunita quando crescê em, essa tua fia!?
A cô da pele dela é a mar bunita que rá vi". Cafusa sempre era elogiada
pelos amigos de seus pais, mas nunca por seus amores platônicos de escola, ou
por suas paixões por homens mais velhos que nem a notavam. Ela começava a
começar a desenvolver vaidades daquelas moças de televisão: louras, da bundona
e de barriga... Que barriga? Elas simplesmente eram esbeltas e perfeitas,
notou. Foi a primeira vez que Cafusa correu pra frente do espelho e se percebeu
se olhando de lado. Então olhou pra TV e depois pro espelho. Forçou a barriga
pra dentro até ficar estambuda e seu rosto acendeu-se ao perceber que poderia
ficar como aquelas garotas se seu bucho sumisse, mas logo faltou o ar e lá
estava o encosto imperfeito de novo.
Com a barriga pra dentro, até que tinha bunda e seu rosto,
já sabia, era perfeito. O problema mesmo era aquela peste de bucho. Lembrou-se
então de um certo dia na escola, quando em uma brincadeira que ela mesma
propôs, notou não ter o aparência que invejava da melhor amiga, que, apesar de
terem a mesma idade, sempre teve as curvas das mulheres da TV, branca e do
corpo bonito, excerto por suas canelas finas. E aquele pequeno defeito a
conformava.
A decepcionante brincadeira começou quando Cafusa propôs as
duas amigas que brincassem de comparar o tamanho das bundas. A Neguinha, que
era pequena e sem graça, não aceitou, mas a melhor amiga de Cafusa topou na
mesma hora. Cafusa, com a total certeza de sua beleza, foi primeiro. Ficou de
costa e falou "E aí?". As duas meninas sentadas na cadeira se calaram
por um momento, mais foi Neguinha que pronunciou a primeira resposta: sua bunda
é batida! E a outra concordou sem se importar muito com a situação e ficou de
lado com a amiga que tentava disfarçar o tamanho da decepção, como se nunca
houvesse se olhado no espelho antes. Bom, a questão é que ainda havia um pingo
de esperança. Se Neguinha falasse a mesma cousa da amiga loura, estava tudo
bem, mas, daquela boca, que sabia do tamanho da realidade que estava se
passando, só saiu elogios e mais elogios. "Não acho que é tão grande assim",
afirmou Cafusa, por algum sentimento esquisito saído de dentro dela. Talvez seu
problema tenha começado aí.
Carolina, comer é sinônimo de abundância, foi aí que por um
momento, a menina achou que comer mais a deixaria com a bunda menos batida. Na
época seu pai trabalhava no Rio Grande do Norte, recebendo um salário mínimo, e
mandava dinheiro pra família uma vez por mês. Eles moravam na terra do peixe. A
comida de panela não faltava e ela adorava comer bem, que, como Bitita, só
ficava feliz quando comia comida gostosa: “hum, que comida gostosa”. E ainda mais com a esperança de que sua bunda
cresceria mais.
Passando dois meses, Cafusa completou 11 anos de idade e
ganhou da madrinha um shortinho amarelo com minúsculas bolinhas brancas. Ela
estava feliz por ganhar um presente. Então o guardou para uma data especial. Na
casa de sua avó haveria uma comemoração da Semana Santa. Comeriam muitos peixes
e Cafusa não teria que barrer a casa naquele dia, pois traria mal presságio. A
menina, que estava toda feliz, foi vestir seu presente. Vestiu com uma blusa
branca de manguinhas, enfiada a parte inferior por dentro. Sua mãe a elogiou
satisfeita. Ela estava linda! Saiu pro alpendre pra esperar os outros se
arrumarem. Nesse momento chegou a vizinha, Nina, de 14 anos, que tinha se
juntado e morava junto com o Chico, de 27 anos. Ela era bem agitada e ria feito
uma galinha e se importava tanto com a forma como as roupas valorizavam seu
corpo de mulher já feita. Foi aí que olhou pra Cafusa e disse, meio espantada, meio
que achando graça: "Tua bunda fica tão batida com erse short! Pur que tu
num veste... ôtro? Acho que essa blusa aí rai cumbiná mar c’outro short, né
não?". Sua mãe, chegando na mesma hora, discordou, falando que estava
bonita daquele jeito mesmo, que a bunda dela num tá batida não. Mas já era
tarde demais. Quando Cafusa chegou na casa da avó, tudo que queria naquele
instante era tirar o short tão querido e agora odiado. Tão odiado que começou a
odiar a própria madrinha por lhe dá um presente tão vergonhoso. Entrou na casa
e pediu outro short emprestado a sua irmã mais velha, a Ana, que era branca e
tinha sido criada com a avó materna, Raimunda. Então se sentiu melhor pra
aproveitar aquele momento decepcionante, como seu corpo.
Tempos depois, quando as paniquetes começaram a assombrá-la
da TV aos seus pesadelos, seu pai tinha saído do emprego e o inverno, acabado.
Com isso voltaram a morar na casa de taipa de sempre, que, durante as chuvas, o
telhado não era o suficiente para mantê-los secos e protegidos. Era aí que se
mudavam para outro sítio para se protegerem em uma casa de tijolos e cuidarem
de um terreno de um dono de terras. Mas agora estavam voltando pro lar de
antes. As chuvas acabaram, mas as dificuldades voltaram. Todo dia da semana
comiam arroz, as vezes com ovo, as vezes com mortadela, e no final de semana
tinha frango de casa, que seu pai trocava na feira. Havia uma galinha que
punhava um ovo por dia, ovos esses que eram comidos por seus dois irmãos mais
novos, o Zé e o Jão. Então Cafusa juntou o útil ao agradável. Ela percebeu que
comer muito só fazia crescer seu bucho e parecia que sua bunda subia pra
barriga e o que ela tinha que fazer era ficar esbelta. Sua barriga sumiria e a
bunda que tinha ia ganhar mais visibilidade. Cafusa não sentia prazer em comer
sem tempero e agora tinha que emagrecer e não foi tão difícil. O arroz branco a
deixava mal por saber que sua família passava dificuldades – Carolina, hoje o
arroz extrapolou seu preço e comer arroz ficou pra gente rica, tipo o quiabo
que sua madrinha fez pro seu batizado –. Mas o objetivo de Cafusa de dieta
radical a consolava. Não precisa sentir prazer em comer e só precisava comer um
pouquinho. Estava funcionando, principalmente quando acordava e se olhava no
espelho, sem barriga nenhuma, quando estava de tripas vazias. Começava a gostar
daquilo.
Sua mãe lhe deu independência de cuidar de si própria desde
cedo, já que estava sempre ocupada em cuidar dos filhos mais novos e de cuidar
da casa e acordar cedo pra acender o fogareiro com lenha ou carvão e fazer
comida, lavar roupas e louças e outras coisas, que, como a Carolina escrevivida
no conto “Favela”, se virava nos mil e uma funções: as de mulher preta, mãe,
dona de casa, esposa, cozinheira, agricultura, arrumadeira da casa dos ricos e
outras cousas mais. Sua mãe em tempos de crises ficava muito triste e as vezes
chorava sem motivo. Quando alguém reclamava do arroz, ela os abraçava e chorava
dizendo que as cousas iam melhorar um dia, quando todos estudassem. Cafusa
ficava de coração partido e dizia em pensamento que tava tudo bem, que ela até
emagreceu e estava mais bonita.
Cafusa não permaneceu muito tempo com ideal de paniquete,
pois ia percebendo, com os comentários dos tios de que ela estava muito magra,
com as pessoas dizendo o quanto estava abatida, sobre o quanto ela era bonita
quando estava mais cheinha, que não importava o quanto ela tentasse melhorar,
alguém sempre iria ficar insatisfeito e ela nunca seria uma mulher perfeita
como as da TV, não importasse o que fizesse ou o quanto. Talvez quando
crescesse as cousas melhorassem como sua mãe disse? Mas se lembra que quando
acordou mesmo foi quando aquela mesma vizinha falou pra ela que suas pernas
eram mais grossas antes e que estava muito magra. Cafusa então abaixou os
ombros e parou de se importar. Seus ombros foram subindo com o tempo.
Carolina, a verdade é que Cafusa não sabe quando parou de se
importar e como sua autoestima foi recuperada, por isso admiro muito a
autoestima que você sempre transmitiu nas suas escrituras.
Como conseguiu manter hoje seu black pixaim e seu corpo
comum de não paniquete?
Na verdade, ela nem
sabe como suportou todos os comentários arraigados na boca podre da televisão e
repetidos por ela mesma e todos ao redor. Talvez tenha sentido hoje o
comentário da mãe discordando do restante do mundo. Quando sua mãe passou a ter
razão? Depois de passar por tudo aquilo, Cafusa sentiu a leveza de não ir se
importando com restante do mundo, porque o resto do mundo é todo o mundo e na
verdade talvez ela fosse o resto. No
final das contas, a beleza é uma criação cruel e não é real, principalmente
para uma criança que acaba emcroando em seus traumas. "Olhe com seus
próprios olhos negros fechados e só sinta, menina", disse o tempo. Ah!
lembrei, foi aí que seus ombros levantaram espontaneamente. Quando li seu livro
“Quarto de despejo” essa história ainda não vivia no papel, mas fez-me
trabalhar meus traumas, como uma roda de compartilhamento, que quando acaba te
faz sentir mais leve. Neste caso, meu compartilhamento foi no papel.
Bem, é claro que isso foi escurecendo aos pouquinhos, como
uma doença crônica que vai te corroendo por fora e por dentro e depois você
simplesmente descobre não ser crônica, mas que a cura só poderia surgir naquele
momento. Uma cruel realidade imposta pelas TVs? Porque antes ela nem sabia ter
a bunda batida, mesmo se olhando num espelho, e descobrir isso acabou sendo seu
pior trauma de infância. Mas a verdade é que a TV é apenas uma das formas de
transmissão de um sistema cruel e racista.
Carol, a bulimia da fome ajudou a menina a superar a falta
de tempero de comida, mas a fome mesmo só foi sentida por causa da bulimia,
pois comida nunca faltou, e isso se agradece a quem um dia já passou fome e
tenteou fazer mudança. Já dizia a avó Raimunda: "a dô da fomi mermo rocê
nunca sintiu. Podi até num tê tido mistura, mas fome mermo rocê nunca
passô". Essa foi a frase escutada por Cafusa depois de grande. Ela lembrou-se
que por muito tempo culpou a fome por sua bulimia, mas bulimia é apenas um
termo pra nomear uma realidade vivenciada por um tipo de lavagem cerebral
alienatória feita na mente das pessoas desde que começam a escutá-la,
assisti-la e vivenciá-la na pele. Sendo repetida diversas e diversas vezes até
você sequer saber o significado de existência. "Viva pra ser o que é
cobiçado! Viva pra ser embranquecida!". E quando se percebeu que aquela
realidade não se encaixaria jamais fora de seus transes, Cafusa simplesmente acordou.
O espelho a sorriu e abraçou: bem vinda a sobriedade, Cafusa!
- Carolina, já conheci um pouco de você, agora você conhece
um pouco de mim também!
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