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Raimunda cresceu implantada em sua mente que gravidez na adolescência tinha como sinônimo catástrofe estrutural individual e familiar, já que afetaria sua família como um todo, desde uma perspectiva frustrada para um futuro de ascensão social através daquele membro jovem, com maior possibilidade de estudar e seguir um caminho diferente dos demais membros que já havia desperdiçado essa oportunidade. Isso tudo Raimunda absorveu através de sua irmã  mais velha, Rita, que engravidou aos 16 anos e se tornou mãe aos 17 anos de idade, de um homem atraente e branco que quase chegava aos quarenta, talvez aos 36. 

Sua irmã parou de estudar  antes de concluir o 2º grau do ensino  médio e passou a morar com a mãe, o padrasto e os 3 outros irmãos, além de Raimunda. Na casa haviam apenas 4 cômodos e um dos quartos havia sido mobiliado pelo responsável da gravidez de Rita, que serviu durante alguns meses para eles realizarem diárias relações sexuais que era sabida em toda a casa, por falta de privacidade na estrutura da casa de taipa. Raimunda era bem mais nova na época, mas ela lembra de seus pais discutindo grandes constrangimentos e incômodos, mas nunca entendeu o por que eles aceitavam aquele tipo de abuso e descaso por parte daquele cara. É como se eles sentissem-se acurralados e imobilizados. Depois Rita foi abandonada pelo "pai de sua filha" e teve que trabalhar e sustentar sua filha sozinha  e sua história é muito parecida com vários outras histórias de mulheres brasileiras pobres e, na maioria, negras. Tudo isso e muito mais implantou esse sentimento catastrófico em Raimunda em relação a gravidez na adolescência . 

Passando os anos, Raimunda  concluiu o terceiro grau e entrou pra universidade federal, onde conheceu vários universos e ideologias, desconstruiu e construiu bolhas e viajou entre elas. Com 22 anos de idade, faltando um semestre para a formatura, em meio a uma pandemia viral, ela engravidou com o primeiro namoro depois de anos com a reshitag #nãomonogamia.

O termo aborto era um tema bastante discutido nos movimentos estudantis de esquerda das universidades federais do Nordeste e Brasil e Raimunda até conhecia umas manas que haviam feito o procedimento de forma eficaz e seguro, recebendo apoio de grupos feministas e associações que buscavam auxiliar essas mulheres de maneira segura. Durante esse tempo, Raimunda, como muitas mulheres, já havia tido suspeitas neuróticas de gravidez psicológica, então o tema aborto sempre foi uma opção, mas ela nunca havia de fato passado por uma gravidez antes. 

A sensação de saber que há algo dentro de você mudando todo seu organismo, colocando matinalmente algo que ninguém sabe o que é pra fora do estômago, mudando seu paladar e olfato, tornado tudo que antes agradava em nojento e até o cheiro e toque do seu namorado a dando ânsia de vomito. Dias sem uma alimentação saudável e com fraqueza, a exploração no preço e contrabando ao comprar o Cytotec. Conflitos psicológicos e amorosos. Será que vou voltar a suportar meu companheiro? Será que voltarei a fumar aquele cigarro denso e nojento? E o cheiro da cannabis, voltará a ser o mesmo?

Mas quem dera que o principal pensamento que a atormentava fossem apenas esses. A imagem de uma praia deserta e pacata e aqueles crespos mais crespos já visto, cor de chocolate, correndo na areia, enquanto Raimunda se banhava no sol agradável da praia. Com um beck  na mão, assistia os cuidados do pai amoroso e cuidadoso  com a distância demasiada que a filha corria. Seu lado animal materno que falava ou simplesmente o medo de fracassar sozinha, ou a simples pressão bíblica já desconstruída?

O parceiro de Raimunda disse que a apoiaria em tudo, mas com o nítido medo da possibilidade desperdiçada de que aquele feto representasse a garantia de fortuna no futuro. Ele deixou explícito sua vontade de assumir a gravidez. Mas como assim assumir? Ela o respondeu: 

- Amor, teremos a oportunidade de ter um filho ou uma filha no futuro, com mais responsabilidade, planejamento e estrutura financeira e social. Um aborto não significa um termino!

Mas Raimunda não pôde deixar de perceber uma melancolia carregada de um certo sentimento depressivo de abandono, o que deixou seu coração partido. Ela não escolheu abusar do cheiro de seu namorado e seu toque, muito menos de exigi-lo, de forma enjoada e labiríntica, responsabilidades financeiras e cuidados. 

Todo dia ele a pedia pra não abortar, mas depois que compraram o cytotec por 500 contos, isso já não era uma opção. Raimunda sabia que não estaria preparada pra ser mãe, mas começaram a surgir questões que a pressionavam de uma forma cruel. O medo do arrependimento; de como poderia ser; a pressão por parte do seu parceiro; a falta de comunicação com a família e amigos por vergonha; o medo de dar errado e acabar em um esbarro num hospital após uma prática criminosa perante as leis do Brasil, mesmo sabendo da eficácia aprovada pela OMS. 

Seu parceiro quase não a olhava mais na cara e a tratava com um desprezo depressivo e todas as noções de controles emocionais de uma mulher grávida são destruído como A torre.

Raimunda sentia-se um pouco culpada por  encontrar-se quase formando e já quase aos 23 anos e mesmo assim não sentir-se pronta pra ser mãe. Mas quem pensaria dessa forma? Eram muitos quase. Ela quase formando-se mas ainda não formada e sem a possibilidade de trabalhar quando se formasse por conta da pandemia e teria que dedicar muito tempo a uma criança que iria depender financeiramente de um pai que estaria no início do curso de graduação e ainda dependia da família pro próprio sustento e ela mesma mal podia se sustentar e nem tinha onde morar senão na casa da mãe.

Se ela era privilegiada com a opção de abortar uma gravidez indesejada, por que não? Quantas mulheres não tinham e não tem essa opção? E em ocasiões bem piores, como gravidez na infância e adolescência, em que elas se encontram em situações  de abandono total, tanto pela família como pelo "parceiro"; remédio ser muito caro e necessitar de um ambiente privado e tomando todos os cuidados e seguindo todas as recomendações das sites seguros de apoio. Isso é privilégio! Quem tem acesso tem direito a um aborto seguro, quem não tem acesso são obrigadas a serem mãe sem um equilíbrio psicológico, financeiro ou mesmo colocam a própria vida em risco ou mesmo se suicidam.

Mas, de qualquer forma, já estava decidido! Raimunda pediu proteção a suas ancestrais femininas e agarrou os privilégios proporcionados. Uma vida não é uma vida se ainda não existe!

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