Contos de minha avó - Parte II

Contos de minha avó


Parte II


Diz que Raimunda ficou trabalhando na casa de comerciantes que a acolheram, mas ganhando apenas o de comer. No primeiro dia, a moça que convenceu seu Bartolomeu, o pai de Raimunda, que ela ficasse, lhe deu as coordenadas sobre o trabalho a realizar: limpar a casa, lavar as coisas sujas de comida e ajudar dona Maria a fazer as comidas. Dias depois era Raimunda quem fazia todo o trabalho doméstico, já que dona Maria já estava adoentada. 

Raimunda não se importava com todo o trabalho. Gostava,  até! Não fazia nada que já não fazia, excerto pela comida nas panelas. 

Durante seus dias, seu maior prazer era ficar na cozinha. Enquanto a panela do feijão cozinhava, sentava no mesmo banco de madeira que sentara no primeiro dia,  e ficava sentindo o cheiro que subia com o vapor da água. 

Tentava não pensar, não tinha esse direito, mas de vez em quando imaginava como estava seu pai, se é que ele estava.

Sua mãe, já sabia, havia falecido. Quando chegara a fazenda, três dias depois teve um sonho que lhe dera a resposta: visualizou  em sonho sua mãe sentada na rede que a menina dormia. Ela olhava pra moça com um sorriso gigantesco e de seus olhos jorravam lágrimas de alívio. Ela nada disse, mas sabia que seu sonho era um sinal de que finalmente sua mãe encontrou-se no céu da morte e agora estava descansada. Acordou, então, como os batimentos tocando o tambor da vida naquela angústia, levando um pedaço seu no ritmo. Chorou!

Passou-se alguns dias, seu Bento completava anos de vida. Mataram um porco de 60 quilos e esperavam alguns familiares da Fortaleza.

Para a comemoração, colocaram um banquete no fogo naquele dia mesmo e o fogão a lenha estava farto. Foi marcante aquele dia para Raimunda, pois seu coração, agora saudável de alimento, desejou não mais saltitar e parar de vez.

Diz que naquele dia passou um homem e uma mulher, meio dia e ponto, com duas crianças. Raimunda estava na Beira do fogo cozinhando parte do porco. Mas dava pra visualizar quem chegava. Era a primeira vez que via outros retirante desde que havia chegado, a duas semanas atrás. 

Vinheram na mesma sombra que tinha estado com seu pai. Ficaram observando, olhando pra dentro. Deviam estar sentido o cheiro de comer. Sentiu vontade de chorar. Aquela sensação, lembrara, era cruel! Era como queimar por dentro as tripas inexistentes. Mas não se permitiu. Não tinha o direito!

Tirou a panela do fogo e seu Bento já encontrava-se na porta:

- O sinhô pode me arranjá um tiquin d'água, pela mor de Deus? 

- Trarraí Raimunda - Disse seu Beto, de forma rabugenta. 

E resmungou em seguida:

- Êssir morta fome rá tá perturbando de novo.

- Arrente quiria descansá um poquin na sombra aqui, riu!? Aí quando o sol abaixar nois rai simbora. 

Raimunda chegou com a água retirada do pote de barro, numa vasilha e com um copo de alumínio do lado, e, oferecendo aos retirantes, não conseguia olhar pra magreza das crianças, que mais pareciam com as ossadas que se deparara nos caminhos, em várias de sua jornada de sobrevivência. E sabia que o destino dessas não seria muito diferente.

Todos beberam água e seus olhares não desviavam da porta a dentro. Entendia àqueles olhares cruéis, mas era apenas mais retirantes como ela, mas, ela, sabia, teve a sorte de um abrigo alimentício em troca de trabalho e eles não. 

Ela entrou pra guardar as vasilhas e voltou a porta, quando escutou ao chegar:

- Sinhó, me dê um pratin de comê pro meus fi? 

E vendo a cara de seu Beto inchar de cólera, implorou:

 - Arrente num pede nem pra nós - Disse olhando pra sua mulher, que mal olhava pro chão - Eu peço só um pratin pros meus fi!? 

Então o ar se dividiu em dois climas impossibilitados. Seu Beto parecia lutar contra algo interno enquanto a miséria implorava por um momento de alívio. Então seu Beto explodiu ao grito com duas só palavras opostas que juntas se tornavam mais cruel que a fome:

- TEM NÃO! 

Foi aí que ele entrou porta a dentro fechando a luz que alumiava a cozinha pela entrada, quando em último suplico ouviu:

- Poir me dê pelo meno um pedacin de rapadura, pa dá pos meus fi?

Mas não houve resposta...

Raimunda entrou-se em desespero sabendo da fartura no fogão a lenha. Meu Deus do céu, aquilo não podia está acontecendo; enquanto na sua cabeça, como um projetor de desgraça, passou-se imagens incontroladas de um paraíso enfeitado de caveiras de inocentes, onde só quem nunca sentiu a dor da fome poderia entrar e desfrutar do porco incinerado de delícias.

Automaticamente, como se sua vida estivesse resumida em um caos, disse aos pés de seu Beto:

- Mar seu Beto. Tanta cumida na bêra do fogo e essas crianças morrendo de fome pidindo de comê e o sinhô num deu...

E antes que ela falasse mais um pouquinho, seu Beto saiu de cara fechada, a ignorando igual se ignora uma mosca morta. Ela não era uma mosca morta, tinha convicção, mais chegava perto de uma varejeira viva. Uma peste que só se alimenta e depois reproduz-se em carniças; mas, se fosse uma varejeira, teria pelo menos asas. Então tornou-se uma varejeira sem asas. Sentiu vontade de vomitar.  Seu corpo, em seguida, foi inchando a sentir-se um tronco de pé de mangueira velha. E em desespero saiu  quintal a fora, com medo de não mais caber no compartimento que estava, rezando em seguida a oração em devoção a sua protetora pretinha, sugerida por uma benzedeira a sua mãe quando a menina teve o primeiro encosto que causava a mesma sensação. 

Duas horas depois, a família de condenados já tinham ido embora. Todos já haviam chegado e era hora de servir a comida de panela na comemoração. Dona Maria se levantou de sua cama para ajudar na servidão das comidas.

Raimunda e dona Maria foram até o fogão para colocar a fartura nas vasilhas de comer. Mas o que acordou a menina da anestesia de sofrimento foi a imagem que não acreditava vê. Ao tirar a tampa da panela preta de fumaça, avistou, no lugar da carne do porco, uma grande porção de tapurus e ossos. Parecia que tinha dias que estavam alí, não sobrando nem um pedacinho de carne sequer. Seus olhos grandes olharam pra dona Maria, que tremia-se dos pés a cabeça ao abrir a panela do feijão e do arroz e do macarrão, que lá não mais estavam, é certo na barriga dos enormes tapurus, que mesmo sem olhos pareciam olhar pra ela rindo, contorcendo o corpo todo em fartância. Então finalmente disse, como quem está sonhando querendo acordar:

- Raimunda, pela mor de Deus, o que foi que aconteceu com essa cumida?

Raimunda, que já havia congelado os sentimentos até as veias, falou com frieza:

- O que aconteceu? Isso aí é castigo. A sinhora num ouviu? Passou duas crianças aqui e pediu até pela mor de Deus que a désse um pratin de cumida e rocês num deru. Aí Deus foi e fez isso aí, que é pra rocês intenderem que existe Deus e nunca mar negar um prato de cumida pra criança.

Raimunda sentiu seus órgãos sentimentais descongelando e a adrenalina fugindo, deixando apenas um único sentimento: o medo. 

Nem sabia se acreditava do que lhe havia saído da boca. Sabia que Deus era cruel, pois havia sentido na pele. Mas foi a primeira vez que visualizou sua crueldade em cima de quem nunca havia sofrido com a dor da fome antes.  

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