Contos de minha avó - Parte I

Contos de minha avó


Parte I


No ano de 1932 acontecia uma das maiores secas no Nordeste do Brasil. No sertão do Ceará, em uma localidade da zona rural,  alguns retirantes migravam de longa distância e invadiam budegas para se alimentarem. 

Diz que Raimunda tinha apenas 12 anos de idade quando se deparou com mais uma ossada de cadáveres infantil. 

Os pais saíam em desespero com seus filhos numa esperança arrancada da fome e em cada estrada era possível sentir o cheiro de uma inocência não vivida e olhos famintos de quem já assistiam o próximo destino. 

As crianças, que eram as mais frágeis, sucumbiam em primeiro. Nem havia forças para o enterro. Morriam e lá ficavam.

Raimunda tinha saído da comunidade de Maracajá com os retirantes que se uniam para uma invasão arriscada. Não tinha muitas opções. Ou morriam de fome ou morriam pelasy armas dos homens protetores de humanos. Eles não eram humanos, sabiam. Mas enquanto uns morriam, outros encontravam espaço para a fuga com alimentos. Talvez um ser de uma família escapasse e conseguisse levar o alimento às crianças que brincavam de comer comida de verdade. 

Raimunda decidiu, juntamente com o pai,  acompanhar os retirantes em incentivo da mãe, quase morta. Seu coração disparava em esperança e o estômago latejava. Não sentia nada ao ver os corpos que caíam de olhos arreganhados fritados ao sol. Não naquele momento.

Sentiu uma mão tocar seu ombro, acordando-a do devaneio causado pela quintura do sol, e barulhos de sussurros de que pelo outro lado ficava uma casa de comerciantes conhecidos. Mas que não alarmasse o restante. Lá podiam encontrar sombra e um pouco de água, talvez. Mas seus ouvidos pareciam tilintar com sinos e sentia uma vontade de no chão sentar e o sol já nem ardia em sua pele preta avermelhada, efeito da fome. 

- Raimunda, tu num tá ouvindo não em. Rai morrê aí que nem o zoutré? 

Seu olhar percorreu a vareda que lhe daria esperança, mas não seria melhor continuar não sentindo dor? 

Seus pés sem entender saíram caminhando não sabia como. Sua vista desembaçou-se ao avistar uma sombra enorme de uma casa Grande. Sentiu um cheiro que parecia de comida, mas nunca sentido antes daquele jeito, sensação que lhe fazia lembrar a esperança da primeira chuva do ano, com o cheiro de terra ao vitalizar as narinas e espirros.  Seus pés se apressou em agonia e viu quem havia sussurrado antes estirado na sombra de um juazeiro de boca aberta. Lembrou-se de seu Bartolomeu comentando com dona Fátima, antes de sair pra caçada:

- Não rô morrê sapecado no sol fia. Se eu rê que num dá mais, rô aguentar até eu incontrá um cantin numa sombrinha. De preferência num pé de Juazero. Pero meno meu esprito rai ficá descansado na sombra. 

Então ele olhou pros olhos brilhantes de dona Fatinha, que mal suspirava, e sorriu com as covas da cara fundas e as costelas mais avantajada que o permitido pela lei do ser humano. 

Raimunda finalmente começou a sentir algo descendo dos olhos. Nem sabia que ainda era possível sair algum líquido de seu corpo. Mas enxugou logo. Tinha que polpar o restante de água, que agora sabia que tinha,  pra o resto de vareda a frente. Pegou na mão do pai e disse, engolindo a seco o vazio da esperança:

- Papai, ande. Temos de andá só marrum poquin. 

Depois de alguns minutos chegaram a uma sombra mais avantajada. Era o casarão que seu Bartolomeu havia falado.

Pelo menos uma sombra mais fresca tinham encontrado.

Raimunda bateu palmas...

Quem saiu foi uma moça com seus 30 anos de idade. Sua pele clara e bonita. Sua cara nada surpresa com mais um retirante e sua voz forte chamando seu pai.

Não demorou muito para reconhecer. Seu Bartomeu já havia trabalhado naquela casa quando solteiro, 13 anos atrás. Era seu empregado mais próxima na época.

- E tu inda vive, home? Pega água pra eles minha fia.

Quando a dona os levou a água o tempo parecia não passar. Enquanto a dona chegava com a água tudo ficou em câmera lenta. A boca da menina tremia imaginado a água  descer pela garganta. Sentiu seu corpo esmoecendo...

- Minina, a água?!

Pegou a copo de alumínio, meio amassado, e o colocou na boca como uma desgraçada. A água escorreu na garganta feito bolas de alívio. Sentiu na testa uma onda descendo sob todo o corpo e seus olhos enchergaram cores, além das cinzas da caatinga.

Viu seu pai bebendo a mesma água e conseguiu enchegar seus ossos perante a camiseta com alguns rasgos. Seu pescoço se movia com a água agoando em vida um cadávere.

- Pode ficare aí na sombra. Rô trazê umas cadera procês. E um cafezin.

- Pai, eles tão faminto. Inda sobrô cumida de panela.

- É melhor eles entrarem então, pra não atrair mais morta fome. Cum todo respeito seu menino. Eles tão sempre passando puraqui. Se eu dé cumida pra todos es, rão se acostumá. Rá disse pressa minina que a rente não pode salvar o mundo. Cum todo respeito seu minino... Cum todo respeito.

Entraram pela porta de trás e o cheiro de café invadiu as narinas sensíveis do pai e da filha. Raimunda sentiu o estômago dando laço nas tripas feito uma giboia matando a presa. Não sentia prazer com o cheiro. Sentia pressa. Conseguia pensar em mais um dia, mas não em segundos.

Sentaram num banco de madeira enquanto a mulher na cozinha preenchia uma bacia com comida.

Entregou-os com duas colheres dentro. Comeram. Sentiram o corpo ficando Alegre imediatamente. Depois Raimunda percebeu que haviam comido feijão com farinha e rapadura. Era o que havia sobrado do almoço. Surgiu entre eles uma vontade incontrolável de rir enquanto a digestão começava, mas foram as lágrimas que visualizaram dos olhos da filha do comerciante, que os deixou por alguns minutos com o pai.

Ao voltar disse:

- Seu Bartolomeu, tamo precisando de uma ajudante na cunzinha. Minha mãe já tá velha e eu num vô continuar muito tempo aqui não. Vô voltá na fortaleza pra terminar um cursinho de seis mês. Aqui sua fia vai sê bem alimentada e consiguí se mantê porum pouquim de tempo...

- Ela rai ficá. E eu rô continuar. Eu rá vivi muito,  minha fia. Agora é vez dela.

Voltou-se pra filha:

-É meió, fia. Depois renho aqui vê como minha fia tá. Praquela desgraça tu num volta pu inquanto.

Raimunda consentiu com olhos arreganhados e enchidos, não só de lágrimas mais de magreza. Não tinha muitas opções naquela existência. Sentiu-se aliviada, mas o oco que apareceu no estômago representava a solidão tão temida e já esperada.

***

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